O Monstro
Mas, afinal, o que são monstros?
Bem, neste blog falaremos apenas
da figura do monstro imaginário, que tem habitado tantas e tantas histórias ao
longo da História e pode ser definida a partir de algumas características que
se mantêm em cada nova narrativa. Na verdade, são justamente essas
características que fazem dos monstros personagens tão atraentes e assustadores
ao mesmo tempo.
Uma primeira característica do
monstro é sua relação com as fronteiras que separam o humano do não humano, o
civilizado do não civilizado, o bem do mal. Como o habitante do "lado
escuro" dessa fronteira, o monstro funciona como uma referência negativa
para que se defina o que é ser humano.
Outra característica é sua
habilidade latente em cruzar essa fronteira, decorrente de sua função de nos
dizer o que é humano e o que é monstruoso. Tal habilidade transforma os limites
numa fronteira mal definida, frequentemente representada pela invasão do
"iluminado" mundo humano pelos elementos "sombrios" associados
ao universo do monstro. Numa visão psicanalítica, podemos dizer que ao
atravessar essa fronteira, o monstro funciona como o afloramento daquilo que
foi recalcado, reaparecendo de maneira deformada, como um sintoma. Já sob a luz da teoria evolucionista de
Darwin, isto poderia ser entendido como uma manifestação do animal primitivo a
partir do qual o ser humano teria evoluído.
Naturalmente,
é preciso ter em mente que o próprio conceito daquilo que é humano e daquilo
que é monstruoso irá sempre apresentar uma definição móvel, a variar com o
tempo, cultura e geografia.
Aliás, mais uma característica do
monstro, no caso da literatura ocidental, é sua mobilidade geográfica ao longo
dos últimos séculos. Isto é, inicialmente o monstro aparece em locais remotos e
despovoados para ir se aproximando fisicamente da civilização. Para que se
tenha uma ideia dessa aproximação através do tempo podemos começar com Caliban
(de 1611/12), o monstro shakespeariano que vive numa ilha deserta de seres
humanos, com exceção do mago Próspero e sua filha Miranda, ali exilados. Dentro
das convenções do monstro, Caliban é mal definido, um ser que parece exibir
diferentes características físicas, humanas e inumanas, para cada personagem da
peça. Domina o idioma de Shakespeare, mas apenas para utiliza-lo de forma
monstruosa, como quando diz a Próspero que se não tivesse sido impedido, teria
violentado Miranda e povoado a ilha de monstros. De todo modo, na peça ele está
condenado a permanecer na ilha, sem jamais se aproximar do mundo civilizado.
O monstro de Frankenstein
(1816-17), por sua vez, hesita entre o mundo civilizado e lugares remotos do
planeta. Promete a seu criador retirar-se para as selvas sul-americanas em
troca de uma noiva que lhe dê uma prole de monstros. Frustrado nesse plano, é
caçado pelo Dr. Frankenstein até o Polo Norte. De fato, a amplitude geográfica
de seus movimentos pode ser lida como uma aproximação entre as trevas e o mundo
dos humanos civilizados. Ele anseia por fazer parte da sociedade humana, ele
mesmo humanizando-se ao adotar “maneiras civilizadas”, como aprender a fazer
fogo, a ler e a desenvolver um código moral. A associação desta criatura com um
contexto de revoluções da ciência, sugere que existem sombras em plena época
das Luzes; com a Era da Razão surgem novos monstros e monstruosidades.
Já Mr. Hyde (1886), o lado
sombrio do Dr. Jekyll na famosa história de Robert Louis Stevenson, exibe
algumas características novas em relação a monstros anteriores da literatura
ocidental. Se Caliban vive numa ilha isolada e o monstro de Mary Shelley
circula por regiões da Europa e pelo Polo Norte, Stevenson situa seu personagem
em Londres, no coração da civilização ocidental da época; sua proximidade
física é tão grande que habita o próprio corpo do muito civilizado Dr. Jekyll,
médico e cientista. O lado obscuro da razão e da ciência sugerido por Mary
Shelley é denunciado de forma explícita e direta por Stevenson. No séc. XIX,
encontramos monstros cultos, belos e inteligentes, como o clássico Dorian Gray,
escrito por Wilde em 1891, que ao longo de sua trajetória pelo sucesso, torna
se capaz de infringir qualquer limite moral a partir do mergulho na sua
vaidade. Ao olharmos para o século XX nos deparamos com o Zumbi, monstro que
parece ter abolido toda e qualquer fronteira entre o humano e o monstruoso.
Onde civilização e monstruosidade se confundem irremediavelmente.
De certa maneira, toda história
de monstro é sobre aquilo que assusta e ameaça a comunidade onde a história é
criada. Por isso, porque são justamente tentativas de conter o Mal, nunca é
permitido ao monstro que procrie; um monstro que se reproduz significaria
justamente a dispersão do Mal por toda a sociedade.
Sabemos que ao final de todas as
histórias o monstro é expulso para algum lugar distante, ou é destruído.
No
plano simbólico, a sua expulsão ou destruição representa a eliminação de todo o
Mal daquela comunidade. Porém, como não pode existir qualquer comunidade humana
sem a presença do Mal, no plano simbólico esta expulsão ou destruição se revela
provisória: Drácula nunca desaparece para sempre; o monstro frankensteiniano
sobrevive ao seu criador e sempre poderá voltar; Mr. Hyde estará sempre
“dentro” de cada um de nós; Freddy Krueger sempre retorna, e as hordas de
Zumbis estão sempre avançando sobre o planeta.
Vou encerrando por aqui. E tal
qual um monstro, aguardem! Não deixarei de retornar.