sexta-feira, 25 de julho de 2014

                                                                 
O Monstro

Mas, afinal, o que são monstros?

Bem, neste blog falaremos apenas da figura do monstro imaginário, que tem habitado tantas e tantas histórias ao longo da História e pode ser definida a partir de algumas características que se mantêm em cada nova narrativa. Na verdade, são justamente essas características que fazem dos monstros personagens tão atraentes e assustadores ao mesmo tempo.

Uma primeira característica do monstro é sua relação com as fronteiras que separam o humano do não humano, o civilizado do não civilizado, o bem do mal. Como o habitante do "lado escuro" dessa fronteira, o monstro funciona como uma referência negativa para que se defina o que é ser humano.

Outra característica é sua habilidade latente em cruzar essa fronteira, decorrente de sua função de nos dizer o que é humano e o que é monstruoso. Tal habilidade transforma os limites numa fronteira mal definida, frequentemente representada pela invasão do "iluminado" mundo humano pelos elementos "sombrios" associados ao universo do monstro. Numa visão psicanalítica, podemos dizer que ao atravessar essa fronteira, o monstro funciona como o afloramento daquilo que foi recalcado, reaparecendo de maneira deformada, como um sintoma.  Já sob a luz da teoria evolucionista de Darwin, isto poderia ser entendido como uma manifestação do animal primitivo a partir do qual o ser humano teria evoluído.

Naturalmente, é preciso ter em mente que o próprio conceito daquilo que é humano e daquilo que é monstruoso irá sempre apresentar uma definição móvel, a variar com o tempo, cultura e geografia.

Aliás, mais uma característica do monstro, no caso da literatura ocidental, é sua mobilidade geográfica ao longo dos últimos séculos. Isto é, inicialmente o monstro aparece em locais remotos e despovoados para ir se aproximando fisicamente da civilização. Para que se tenha uma ideia dessa aproximação através do tempo podemos começar com Caliban (de 1611/12), o monstro shakespeariano que vive numa ilha deserta de seres humanos, com exceção do mago Próspero e sua filha Miranda, ali exilados. Dentro das convenções do monstro, Caliban é mal definido, um ser que parece exibir diferentes características físicas, humanas e inumanas, para cada personagem da peça. Domina o idioma de Shakespeare, mas apenas para utiliza-lo de forma monstruosa, como quando diz a Próspero que se não tivesse sido impedido, teria violentado Miranda e povoado a ilha de monstros. De todo modo, na peça ele está condenado a permanecer na ilha, sem jamais se aproximar do mundo civilizado.

O monstro de Frankenstein (1816-17), por sua vez, hesita entre o mundo civilizado e lugares remotos do planeta. Promete a seu criador retirar-se para as selvas sul-americanas em troca de uma noiva que lhe dê uma prole de monstros. Frustrado nesse plano, é caçado pelo Dr. Frankenstein até o Polo Norte. De fato, a amplitude geográfica de seus movimentos pode ser lida como uma aproximação entre as trevas e o mundo dos humanos civilizados. Ele anseia por fazer parte da sociedade humana, ele mesmo humanizando-se ao adotar “maneiras civilizadas”, como aprender a fazer fogo, a ler e a desenvolver um código moral. A associação desta criatura com um contexto de revoluções da ciência, sugere que existem sombras em plena época das Luzes; com a Era da Razão surgem novos monstros e monstruosidades.

Já Mr. Hyde (1886), o lado sombrio do Dr. Jekyll na famosa história de Robert Louis Stevenson, exibe algumas características novas em relação a monstros anteriores da literatura ocidental. Se Caliban vive numa ilha isolada e o monstro de Mary Shelley circula por regiões da Europa e pelo Polo Norte, Stevenson situa seu personagem em Londres, no coração da civilização ocidental da época; sua proximidade física é tão grande que habita o próprio corpo do muito civilizado Dr. Jekyll, médico e cientista. O lado obscuro da razão e da ciência sugerido por Mary Shelley é denunciado de forma explícita e direta por Stevenson. No séc. XIX, encontramos monstros cultos, belos e inteligentes, como o clássico Dorian Gray, escrito por Wilde em 1891, que ao longo de sua trajetória pelo sucesso, torna se capaz de infringir qualquer limite moral a partir do mergulho na sua vaidade. Ao olharmos para o século XX nos deparamos com o Zumbi, monstro que parece ter abolido toda e qualquer fronteira entre o humano e o monstruoso. Onde civilização e monstruosidade se confundem irremediavelmente.

De certa maneira, toda história de monstro é sobre aquilo que assusta e ameaça a comunidade onde a história é criada. Por isso, porque são justamente tentativas de conter o Mal, nunca é permitido ao monstro que procrie; um monstro que se reproduz significaria justamente a dispersão do Mal por toda a sociedade.
Sabemos que ao final de todas as histórias o monstro é expulso para algum lugar distante, ou é destruído. 

No plano simbólico, a sua expulsão ou destruição representa a eliminação de todo o Mal daquela comunidade. Porém, como não pode existir qualquer comunidade humana sem a presença do Mal, no plano simbólico esta expulsão ou destruição se revela provisória: Drácula nunca desaparece para sempre; o monstro frankensteiniano sobrevive ao seu criador e sempre poderá voltar; Mr. Hyde estará sempre “dentro” de cada um de nós; Freddy Krueger sempre retorna, e as hordas de Zumbis estão sempre avançando sobre o planeta.

Vou encerrando por aqui. E tal qual um monstro, aguardem! Não deixarei de retornar.