domingo, 22 de junho de 2014

Os zumbis venceram: Amemos os zumbis


Desde Zumbi branco (1932), dirigido por Victor Halpering e estrelado por Bela Lugosi, a figura do zumbi frequenta os filmes hollywoodianos. A partir daí algumas convenções se estabelecem, como a representação do morto vivo como um ser escravizado por um senhor, uma relação construída por meio da magia ou da feitiçaria. Além desta relação entre senhor e escravo, o filme inclui outros elementos oriundos da literatura de horror anterior à sociedade de massas como a divisão dos personagens basicamente entre uma aristocracia ociosa e trabalhadores sem direitos, explorados no campo ou em uma estrutura fabril muito primitiva, além da composição do figurino e do cenário da literatura gótica do século XIX. Assim como o monstro de Frankenstein, o zumbi pode ser lido como uma parábola do trabalhador explorado nas economias modernas industriais, bem como do trabalhador nativo de suas colônias.
Zumbi branco surge dentro das convenções de um filme de horror, onde encontramos o elemento sobrenatural, ou inexplicável, o castelo terrível, num precipício à beira do mar, a heroína ingênua dominada pelo vilão, a atmosfera de mistério e suspense e o herói enlouquecido pela pressão de uma situação incompreensível
Resumidamente, é a história de um jovem casal apaixonado, Neil (John Harron) e Madeleine (Madge Bellamy), que aceita o convite de Beaumont (Robert Frazer), um homem que conhecem num trem, para visitar sua mansão no Haiti, e ali realizarem sua cerimônia de casamento. Na verdade, Beaumont está apaixonado por Madeleine e pediu ajuda a Legendre (Bela Lugosi) para conquistá-la. Legendre é um feiticeiro que revive mortos para obter mão de obra escrava.
Usando um cachecol de Madeleine, Legendre faz um feitiço vodu, matando-a e trazendo-a de volta dos mortos para se entregar a Beaumont. Entretanto, Beaumont logo percebe que não pode se satisfazer com uma mulher zumbi, sem alma, sem vontade e sem desejo, e se arrepende. Enquanto isto, Neil, o noivo, entra em profunda depressão após o enterro da amada e mergulha na bebida. Quando descobre que Madeleine se tornou uma morta-viva, segue até o castelo de Legendre para se vingar e salvar a noiva.
Vale ressaltar outros elementos do filme, que ajudam a estabelecer um contexto pré-moderno e pré-industrial para a trama: O casal protagonista, apesar da menção à modernidade nova-iorquina, chega à mansão de Beaumont à noite, numa carruagem, por uma sombria estradinha de terra. Em um determinado ponto do caminho encontram um grupo de homens e mulheres vestidos como trabalhadores do campo, elas com lenços na cabeça e eles de chapéu de palha, enterrando um morto em pleno leito da estrada. E os zumbis de Legendre, quase todos negros ou mestiços, trabalham na plantação de cana, ou na fábrica de açúcar, em que o pouco maquinário é movido pelos seus corpos. Assim se estabelecem as convenções da fase clássica deste gênero: indivíduos despertados da morte por um senhor perverso e cruel, sem alma e sem vontade própria, movendo-se num cenário que se alterna entre castelos sombrios ou ricas propriedades rurais e plantações de cana, em meio ao qual acompanhamos uma heroína branca perseguida pelo vilão e salva pelo seu hesitante herói.
Onze anos mais tarde, o diretor Jacques Tourner lança A morta-viva, mais uma vez combinando as plantações caribenhas, o vodu e uma mulher branca transformada em zumbi. Aqui, a história apresenta Betsy (Frances Dee), uma jovem enfermeira canadense que vai às Índias Ocidentais para tratar da Jessica Holland (Christine Gordon), esposa de Paul Holland (Tom Conway), dono de uma fazenda de cana de açúcar. Jessica parece sofrer de um tipo de paralisia mental surgida depois de um episódio de febre. Segundo o doutor Maxwell (James Bell), a febre teria danificado a medula espinhal, deixando a paciente sem a capacidade de fazer nada por vontade própria. Os outros membros da família Holland são o meio-irmão Wesley Rand e a senhora Rand (Edith Barret), médica e mãe de Paul e Wesley.
Logo, Betsy se apaixona por Paul e num gesto extremamente romântico e altruísta decide fazer todo o possível para curar sua esposa, acreditando que ele ainda a ama. Depois do fracasso de um tratamento médico radical conduzido pelo Dr. Maxwell, ela fica sabendo, por meio de Alma (Theresa Harris), empregada da casa, da possibilidade de cura de Jessica através de um ritual vodu, realizado por uma feiticeira da comunidade negra da ilha. Acompanhada de Alma, Betsy leva sua paciente até o centro vodu sem autorização da família. Lá, chocada, descobre que a feiticeira vodu é a própria Senhora Rand, que se justifica dizendo recorrer ao vodu somente para convencer os ilhéus a tomarem seus medicamentos, mas também admite que Jessica jamais poderá ser curada.
A confusão toda envolvendo os nativos e o vodu atrai a atenção da polícia local e pressionada diante de seus familiares, a senhora Rand admite ter matado Jessica e a transformado em zumbi, para impedir que ela traísse Paul e fugisse com seu meio-irmão Wesley.
Por fim, o próprio Wesley mata Jessica definitivamente, deixando seu corpo para ser encontrado na praia pelos negros da ilha.
Assim como em Zumbi branco, o filme de Jacques Tourner faz seguidas referências à escravidão. Em diferentes momentos da trama personagens se referem lugubremente a uma escultura em madeira de São Sebastião atravessado por flechas no jardim da propriedade, explicando que aquela era a figura de proa do navio negreiro que havia trazido os escravos da família Holland.
Mas os filmes de zumbi sofrerão enormes transformações a partir de A noite dos mortos vivos. Filmado por George Romero em preto e branco e com baixo orçamento, o filme se concentra num grupo de sete personagens que se isolam numa casa de fazenda abandonada, depois que os mortos começam a sair de suas sepulturas e a vagar por todo o país devorando os vivos. Ali passarão a noite enquanto enfrentam os zumbis do lado de fora e lidam com os conflitos que surgem em meio ao próprio grupo.
 Com as novas características atribuídas à figura do zumbi, este personagem se transforma num dos mais populares e bem sucedidos dos subgêneros dos filmes de terror. Agora, os mortos vivos não são mais ressuscitados por métodos mágicos, como no vodu; não são mais corpos sem vontade própria e escravizados pelo vilão da trama, mas seres movidos por algum impulso interno e incontível, de origem nunca bem explicada, alheios a qualquer ordem externa. A noite dos mortos vivos enfatiza a ausência de uma explicação mágica, ou mesmo de qualquer explicação para o aparecimento dos zumbis, e substitui uma vontade regida por um senhor por outra vontade, agora de origem desconhecida, cujo impulso se apresenta como uma fome insaciável pela carne de humanos vivos.
O filme de Romero também introduz outras novidades significativas. Por exemplo, o cenário deixa de exibir castelos terríveis e canaviais sombrios e agora os mortos vivos passam a assombrar a bem cuidada zona rural estadunidense enquanto fora das salas de exibição a sociedade vive os protestos contra a guerra do Vietnã, o movimento hippie, a invenção da pílula anticoncepcional e o amor livre, os assassinatos de John Kennedy e de Martin Luther King Jr e a chega à Lua. A década de 1960 também pode ser identificada com a chegada definitiva da sociedade estadunidense na modernidade e com a tradução do sonho americano em sonho de consumo. A modernidade também é indicada no filme pela presença da televisão e do rádio.
Produção de baixo orçamento, em preto e branco quando o filme em cores já predominava, inclusive nos filmes de terror, A noite dos mortos vivos rendeu grande bilheteria e uma recepção polêmica. Para muitos o filme trazia uma mensagem antirracista, pela escolha de Duane Jones como o primeiro ator negro a protagonizar um filme de horror. Ben, seu personagem, dotado das qualidades do herói hollywoodiano, é o único que sobrevive ao longo da noite na casa abandonada. Mesmo assim, na manhã seguinte é assassinado com um tiro na cabeça por um dos homens do xerife. Na sequência final vemos fotos de jornal onde seu corpo aparece sendo carregado como o de um morto vivo.
A noite dos mortos vivos traz elementos que provocam diferentes leituras, como a morte de todo o elenco principal, inclusive da heroína, mas a principal transformação foi fazer do aparecimento do zumbi um evento sem explicação clara, dotando, assim, os novos mortos vivos de uma vontade própria, ou, mais exatamente, de uma vontade sem controle. Este novo zumbi que se move sem qualquer comando passa agora a se prestar às mais variadas metáforas nos inúmeros filmes que se seguiram, mas neste breve espaço vamos nos concentrar rapidamente sobre aquela que possivelmente foi a metáfora que mais se fixou entre o público e a mais reforçada pelo próprio George Romero: o zumbi como o individuo desumanizado e dominado pela lógica da sociedade de consumo .
 Em outras palavras, a partir de George Romero os filmes de zumbi são atualizados para uma representação social mais contemporânea, fortemente focado na lógica consumista das sociedades ocidentais, e particularmente a estadunidense. Dez anos depois, com O despertar dos mortos (1978), Romero faz ainda mais explícita sua crítica ao consumismo ao colocar um shopping center como refúgio dos personagens principais, onde ficam sitiados, pois é para lá que se dirige a massa de zumbis, supostamente movidos pelo imperioso hábito de consumo que os dominava em vida.
Enfim, o zumbi de George Romero é por definição um típico símbolo da sociedade de consumo: o que o move é o desejo irrefreável de consumir, desejo este que se apresenta como um impulso irracional e incontível, que nada acrescenta a sua existência, já que ele está morto. Desprovido de humanidade, ele retém o impulso consumista como último traço do que um dia foi. Movido apenas pelo desejo de consumir, o zumbi nada produz, gerando um desequilíbrio que levado ao limite significaria a própria destruição da sociedade humana.
Em 2009, com a comédia Zumbilândia, o diretor Ruben Fleischer leva o comportamento dos zumbis de Romero ao seu limite lógico ao criar uma sociedade onde quase todo mundo no planeta se transformou em morto vivo. Nesta comédia apocalíptica, as pessoas se transformaram em zumbis após consumir hambúrgueres contaminados por um vírus, uma explicação tão vaga e absurda quanto a radiação espacial de A noite dos mortos vivos. Permanecem como humanos apenas quatro personagens: Columbus (Jesse Eisenberg), um jovem nerd antissocial; Tallahassee (Woody Harreslson), ex dono de oficina obsecado por encontrar um twinky (um doce industrializado )ainda no prazo de validade; e a jovem e sexy Wichita (Emma Stone) e sua irmãzinha adolescente Little Rock (Abigail Breslin).
O filme de Fleischer chega às telas logo depois da eclosão da crise financeira mundial, disparada pela quebra do banco Lehman Brothers, nos Estados Unidos, em setembro de 2008. Essa crise, que ainda se arrasta por todo o mundo desenvolvido sem que se aviste seu fim, é resultado justamente de uma lógica econômica e cultural onde na mesma medida em que se abandona a produção e o trabalho, se privilegia o consumo. Uma crise que destruiu a “normalidade” existente e que não permite vislumbrar qualquer nova “normalidade” a ser alcançada.
O cenário de Zumbilândia é um mundo de mercadorias em abundancia e sem consumidores (nem os zumbis tem mais quem comer), como os novos pobres que não cessam de surgir nos Estados Unidos e Europa. No filme o desejo de retorno à antiga normalidade aparece na procura obsessiva de Tallahassee por um twinky; ao mesmo tempo, a futilidade da antiga normalidade fica bem ilustrada nas várias cenas em que os quatro protagonistas se divertem simplesmente destruindo mercadorias em exposição.
Nos filmes de George Romero sempre há uma volta à normalidade ao final da trama. De um modo ou de outro, seja pelas forças do Estado, seja pela promessa de uma nova sociedade, como em Terra dos mortos (2005), no universo de Romero sempre persiste uma esperança de normalidade. O universo de Fleischer não oferece mais essa possibilidade. Quando a lógica do hiperconsumo é levada ao seu limite, onde a relação entre as pessoas é substituída pela relação entre os objetos, tudo o que resta são pessoas vazias a quem seguir consumindo não serve de mais nada. Sem que se escape desta lógica não há futuro para a sociedade. Do mesmo modo, sem ter para onde voltar, os personagens de Zumbilândia se ocupam cruzando um país vazio e assombrado até atingirem seu objetivo: brincar num grande parque de diversão na costa oeste. Ao final, alcançado esse objetivo, nada lhes resta. Como consolo, reconhecem-se como família. Mas uma família que não tem o que fazer, nem para onde ir. Zumbilândia termina com uma mal disfarçada admissão de que não há mais um futuro.
Entretanto, sempre haverá um futuro. Por mais que a crise mundial siga sem um claro horizonte e sem solução, o mundo segue existindo e as pessoas, vivendo. E é como uma alternativa utópica às distopias de Romero e de Fleischer que aparece em 2013 Meu namorado é um zumbi (Warm bodies), dirigido por Johnatan Levine. Lançado cinco anos depois da eclosão da crise, o filme de Levine situa seus zumbis num mundo pós-apocalíptico semelhante àquele de Zumbilândia, com um punhado de seres humanos lutando para sobreviver num mundo tomado por zumbis.
Se o filme de Fleischer termina sem um futuro para a humanidade, novas transformações no universo de Levine reabrem a possibilidade de um futuro menos estéril; se o primeiro é uma distopia, o segundo é uma utopia. E a utopia do ressurgimento de um mundo reumanizado precisa de um zumbi que fale.
A trama começa com as reflexões de um protagonista incapaz de lembrar o próprio nome, sem memória do passado e... morto. Ele não consegue realmente falar, mas ouvimos seus pensamentos. “R” (Nicholas Hoult), nome que receberá mais adiante da heroína, tem consciência de ser um morto vivo. Passa a maior parte do tempo perambulando por um aeroporto em meio a uma multidão de outros zumbis. Agora existe um segundo tipo de zumbi, os chamados esqueletos, em estado mais avançado de decomposição, de feições escuras e sinistras, extremamente agressivos e devoradores de qualquer coisa que tenha um coração pulsante; zumbis que aparentemente perderam seus últimos traços de humanidade. Esses dois tipos de mortos vivos dominam o planeta.
Os humanos que restaram vivem protegidos por altos muros rodeando parte do centro de Nova York. No interior dos muros levam uma vida com poucas esperanças, liderados por uma instituição militar, enviando grupos armados de quando em quando para recolher medicamentos e outras necessidades do lado de fora. E é em uma dessas saídas que Julie (Teresa Palmer) e seu grupo são surpreendidos por zumbis. R mata seu namorado, mas apaixona-se por ela à primeira vista e a salva, conduzindo-a até o avião abandonado que ele habita. Ao longo dos dias que dura essa convivência, segue-se um duplo processo de sensibilização de Julie em relação a R e da própria humanização deste.
Eventualmente, Julie abandona R e retorna para sua casa intramuros, onde seu pai é o comandante militar que odeia zumbis. Desolado no caminho de volta ao aeroporto, R encontra um grupo de zumbis que, como ele, estão passando por um processo de reumanização. Como ele, começaram a ter sonhos e não mais apenas fragmentos da memória daqueles cujos cérebros comeram. Por conta desse processo de voltar à vida, misteriosamente deflagrado pelo contato entre Julie e R, os esqueletos também estão seguindo em direção à cidade sitiada, para dar fim aos humanos e, de quebra, de todos os outros zumbis.

Já dentro da cidadela, R consegue encontrar Julie e juntos tentam, sem sucesso, convencer seu pai (Grigio/John Malkovich) de que os zumbis estão de algum modo se reumanizando. Na confusão que se segue zumbis e humanos se juntam para enfrentar os esqueletos, derrotando-os. A trama termina com seres humanos e zumbis juntos. Os muros da cidadela são derrubados. Julie e R seguem como namorados. As copas das árvores do Central Park exibem o alaranjado do outono. À plateia é entregue uma vaga utopia, sem uma proposição política mais clara, mas com a promessa de que o amor a tudo vencerá. Finalmente, a sociedade de consumo encontra sua redenção.

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